quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Reflexão


   Sempre que escrevo sobre o sertão, ou quando o desenho em minha mente evito usar aquela que talvez seja a frase mais propalada do livro “Os Sertões”. Conhecendo mais a fundo o lugar, depois de tudo que vi e descrevi percebo que não tenho como fugir dela: “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Espero sinceramente que este dom de tirar forças da fraqueza, sorriso das lágrimas, esperança da amargura se estenda aos "filhos dos filhos" da terra, como eu.

O açude de Cocorobó

   Em outubro de 1897 chegava ao fim a guerra de Canudos. Mais de dez anos depois, no vazio deixado pela comunidade outrora liderada por Antônio Conselheiro, novas famílias se estabeleceram. Não mais que setenta moradias formaram o novo povoado de Canudos. Entre as ruínas, novas vidas construíram suas histórias, mulheres deram à luz, crianças cresceram, pessoas morreram.
   No início de 1969 as águas do rio Vaza Barris, literalmente, afogaram não só esta comunidade, mas também o cenário daquela que foi uma das maiores batalhas do Brasil. A construção do açude de Cocorobó é, ainda hoje, uma questão controversa. A maior dúvida diz respeito aos motivos que levaram a edificação de uma barragem justamente sobre as ruínas da antiga Belo Monte. O local que deveria ter sido tombado como Patrimônio Histórico da Humanidade, só pôde ser visto por um curto período após esta data.
   Entre o final de 1996 e meados de 1997 uma fortíssima seca assolou a região fazendo com que parte, ou melhor, quase todos os 243 milhões de m3 de água do açude baixassem muito, chegando quase a secar.
   Existem duas correntes de pensamento para justificar a construção da barragem. Uma diz respeito à necessidade de “se levar” água para o sertão, e amenizar assim as dificuldades daqueles que vivem lá. A outra possibilidade é que a seca foi apenas uma (forte) justificativa para que o açude fosse construído em uma tentativa de esconder o massacre que ocorreu em Canudos, e, que só teria vindo à tona cinco anos após o término da batalha, com o lançamento de “Os Sertões”. A obra revelou pela primeira vez o que realmente aconteceu ali: uma chacina.
Este fato criou uma mácula não só no Governo, mas também no Exército brasileiro. Não era interessante manter resquícios de uma história de crueldade, que em seu fim foi movida por um desejo de revanchismo, muito maior do que de justiça. Será que não bastava vencer, era mesmo necessária aquela barbárie contra um exército de famintos esfarrapados? A obra revelou pela primeira vez o que realmente aconteceu ali: uma chacina.
   A história difundida entre os moradores da região que consta inclusive da “Cartilha Histórica de Canudos” conta que o então presidente Getulio Vargas, em uma visita à cidade teria sido recebido pelo popular Isaías Canário, chefe político da região. Com um exemplar de “Os Sertões” debaixo do braço, o gaúcho teria se sensibilizado com o que viu ali perguntando, então, qual benefício poderia fazer pela cidade. Canário respondeu sem pestanejar: “Um açude, Senhor Presidente” – o lugar sugerido era a Serra do Caipã, um local próximo dali - ao que Getúlio respondeu: “Pois será feito”.
   Não há registros oficiais que digam que este diálogo de fato ocorreu. O Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca) alega que estudos feitos na região mostraram que ali era o melhor lugar para a construção da barragem e que a escolha nada tinha a ver com o local ter sido o mesmo onde ocorreu a guerra de Canudos.
   Qual das histórias é verdadeira, dificilmente se saberá, já que grande parte dos documentos que contavam o que realmente aconteceu naquela época desapareceu. O que se sabe é que o açude existe e que mesmo tendo consciência do absurdo que foi construí-lo naquele local, quase ninguém se opôs, afinal era água. Ainda hoje a grande maioria dos moradores acredita que tenha sido positiva sua edificação.
   Antônio César é guarda do Parque Estadual de Canudos. Ele crê que “a construção do açude foi pra tentar apagar a imagem da guerra, a vergonha do país. Foi destruída uma população que tava organizada, tentando sobreviver”. A diferença é que ele não vê benefício na barragem, mas sim uma obrigação. A forma clara como resume a questão é singular: “Não foi benefício (a construção do açude), foi um questão que há 45, 50 anos o homem foi à Lua e o sertanejo até hoje continua andando em estrada de chão (terra batida), porque não beneficiar? Construir um mar no sertão”. Não dá para esquecer, porém, da necessidade de viver e pensar de acordo com a realidade, com o que é possível. É obvio, portanto, que não dá para construir um mar no sertão. Será? “Talvez para quem viva na cidade isto seja pouco, mas para o sertão, isto aqui é um mar”.

Detalhes


   Em cada viagem ao sertão noto um detalhe que havia passado despercebido da vez anterior. Pode ser o som do vento uivando, uma flor, uma ave. Duas circunstâncias, porém, sempre me impressionam, fazendo com que eu sinta uma sensação de liberdade e paz de espírito únicas: o pôr-do-sol e quando, ao olhar para o horizonte vejo claramente a sombra das nuvens refletidas nas montanhas. Em momentos como estes, entendo porque meus pais e tantos outros sentem tamanha saudade do sertão.

Só um parêntese


É curioso notar que os adoráveis ovinos e caprinos são muito comuns no sertão. Em uma comparação um tanto esdrúxula, encontrá-los é tão trivial quanto deparar-se com cachorros e gatos nos grandes centros urbanos. Eles estão por toda a parte: nas ruas, nas estradas, nas casas, são um elemento da paisagem.

Sobre Canudos Velho


   Não há rodoviária, nem paradas em Canudos Velho.É desapontador perceber que nada no local faz lembrar uma comunidade que vive a beira de uma cidade histórica extinguida duas vezes, pela guerra e pela água.
   Se for levado em consideração que a pesca é a principal fonte de renda de Canudos Velho morar a beira de um açude repleto de tilápias, pescadas e tucunarés é uma benção. Por outro lado a água não pode ser consumida pelos moradores por ser salobra. O “galego” - na região são chamados assim àqueles que possuem o cabelo e a pele claros, mesmo que tenham ficado avermelhados por conta do sol forte - Lourivan Silva, de 46 anos é um pescador casado, pai de três filhos, que chama a atenção pela facilidade com a qual se expressa e pela lucidez em relação a realidade em que vive.
   Ele diz que há quase uma década os governantes prometem a instalação de um dessalinizador no açude - uma máquina que faria um tipo de filtragem na água, separando o sal da água potável. Dizem que falta verba, mas segundo seus cálculos o que foi gasto no envio de caminhões pipas para abastecer a cidade em todos esses anos, certamente já teria custeado a instalação de uma máquina desta. Outro fato interessante relatado por ele é que o esgoto das casas não é canalizado, é despejado diretamente no açude. A informação tem lógica, mas não foi encontrada uma pessoa apta a dizer se procede ou não.

De Volta ao Sertão

     Há 112 anos chegava ao fim a Guerra de Canudos. O massacre, que dizimou a população da pequena comunidade do interior da Bahia, não é muito lembrado hoje em dia. Na verdade, muitas pessoas que vivem no Sudeste confundem o que lá aconteceu com outras revoluções ocorridas no Nordeste, como Balaiada e Sabinada. Na Canudos de hoje, a guerra é confundida por muitos com a história do cangaceiro Lampião.
   Fazia quatro anos que havia estado em Canudos pela última vez – a terceira de minha vida até então. Lembrava de coisas muito genéricas: as pessoas, o calor, as cabras, minha família. Sou filha de canudenses, cresci ouvindo sobre esse lugar épico, sua grandeza, sua tragédia, sua miséria, seu mistério. Desvendar o sertão...!? Só se for com a alma, porque as mãos, os pés e os olhos não dão conta...!
    Como, em meu caso, era inviável conhecer todo o sertão nordestino, escolhi esta cidade para personificar a região. Afinal, embora existam particularidades, o sertão se diversifica pouco de um ponto a outro. O livro de Euclides da Cunha foi usado como inspiração, como forte referencial, já que nele há a descrição de como era o lugar, as pessoas, o clima, enfim, tudo que procurei observar nos dias de hoje. Visitei a grande maioria dos lugares que foram cenários da saga tão bem descrita pelo autor - Monte Santo, Uauá, Bendegó, Cumbe, Cocorobó e, claro, Canudos.
   Ainda que eu alcançasse um grau de virtuosismo que certamente não alcançarei  aqui seria impossível que ele traduzisse o que se passou. Como ser imparcial sendo parte do lugar?